Dos escritos de 10 de abril de 2016

Almir Oliveira
4 min readDec 22, 2020

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Gotham City realística: São Paulo da opulência à marginalização do próprio povo.
Photo by Mariana Fernandes on Unsplash

São Paulo borbulha. Em um dos raros domingos que eu saio pela manhã, vi a polícia revistar um carro caro “coincidentemente” guiado por um homem negro, que passava por situação vexatória, mas bocejando de maneira debochada com as mãos pra trás no meio da Rebouças. Minutos depois vejo o Viaduto do Chá tomado de barracas: era uma ocupação contra o impeachment (da ex-presidenta Dilma Rousseff), aparentemente organizado pela FLM (Frente de Luta por Moradia), obviamente ignorada pela mídia tradicional. Quase 10 horas da manhã e a Praça da Sé já estava tomada por moradores de rua, lúmpens diversos, transeuntes, pelo pastor evangélico com o seu microfone, turistas, hordas de ciclistas, católicos visitando a Catedral e aleatórios. A Caixa Cultural, meu destino, já estava movimentada, os ingressos do dia se esgotando e as exposições sendo bem visitadas. Não eram nem 10h30 da manhã e a cidade efervescia.

Lembro-me deste dia com a clareza de como se tivesse sido o último fim de semana. Escrevi este texto sob um lampejo criativo e, ao mesmo tempo, sonolento com um celular de tela reduzida e com um corretor que mais atrapalhava do que ajudava. Queria muito ter escrito mais e com um olhar mais etnográfico, pois a sequência de eventos me pedia. Paradoxalmente, a própria cidade me impedia de seguir adiante na minha empreitada, pois, mesmo sendo uma manhã ensolarada de domingo, descer do ônibus me jogava em uma sequência de ações, preocupações e necessidades que transformam o simples ato de buscar ingressos para uma apresentação de dança em uma via sacra digna de um dia turbulento no trabalho.

Sendo paulistano, qualquer coisa que não se assemelhe ao pico da tarde chuvoso de uma véspera de feriado prolongado parece divertido e relativamente tranquilo. Pois, mesmo a qualquer hora de um domingo, as pessoas ainda andam pelos corredores e escadas do Metrô como se estivessem atrasadas para uma reunião. Ai de quem ficar parado do lado esquerdo da esteira ou escada rolante! Não existe ofensa maior! Também estarão arriscadas a pegar transporte público razoavelmente lotado. Quem já pegou qualquer linha estrutural do “ônibus da madrugada” lotada, trânsito de carro parado na Av. Rebouças às 2h da manhã de domingo para segunda, sabe do que estou falando (não é piada; isso já aconteceu comigo várias vezes). Eventos culturais gratuitos, inauguração de rede de lojas, lançamento de produto famoso, tarde de autógrafos, amostra grátis de comida, mostra de cinema, exposição famosa, show aberto de qualquer que seja o estilo: qualquer coisa para agradar e/ou gerar distinção social é motivo para muvucar e fazer fila. Pelo menos fazemos fila.

São Paulo é, à sua maneira, um eterno relacionamento abusivo. Ela mal trata mesmo. Trânsito, horas a fio para se deslocar entre casa e trabalho, tudo cheio, desigualdade, medo da violência, custo de vida elevado, salário nem tanto, um culto ao estresse laboral; não à toa, é a cidade com mais casos de doença mental do mundo. Porém, inexplicavelmente não largamos dela, e quando passamos muito tempo fora, ficamos com saudades. Não acho que seria pelas vagas de emprego supostamente mais qualificadas, pois, mesmo com trabalho remoto, as pessoas não vão embora, ou se pela alta qualidade dos serviços, que uma minoria consegue consumir, se pelo acesso a bens culturais incríveis, que também uma minoria tem acesso geográfico, conhecimento real da grandeza deles ou se sente à vontade para transitar neles, dada a exclusão social invisível, mas que todo mundo percebe. Poderia ser também porque a família e os amigos já moram aqui, mas cada visita ou encontro configura uma pequena viagem em uma cidade imensa e intransitável. Pra mim, que sou do fim da Zona Oeste, a Zona Norte é um lugar tão estranho, que me sinto mais familiarizado com Paraty — RJ do que com o Jardim Tremembé, no pé da Serra da Cantareira.

Sinto falta do antigo normal, tão anormal. De prospectar eventos culturais a baixo custo, de ser o eterno figurante de cafeteria. Peço um capuccino, algum salgado ou pedaço de bolo e passo horas na mesma página do livro sem conseguir me concentrar por causa da atratividade da comida ou das pessoas que passam ao meu redor. Amo ler, mas observar as pessoas é a minha verdadeira e irreversível paixão. Amo misturar degustação com contemplação. Exatamente por isso que sou um quase morador do CineSesc, e a sua cafeteria mágica com abertura para a tela do cinema. Ali não haverá pessoas transitando, mas sempre estarei vislumbrado pela ficção ou pelo documentário rodando em 35mm ou em 4K, tanto faz, mas nem me atreverei a abrir um livro.

Não sei bem porque escrevi sobre São Paulo. Só queria compartilhar a alegria de ter reencontrado a breve reflexão sobre um domingo qualquer que postei há mais de quatro anos, mas escrever é uma terapia: você acha que vai de debruçar em um tema, mas, quando se dá conta, já falou sobre um sonho, passou por alguém que não vê ha tempos e percebe uma ferida que pensava já ter cicatrizado. Aliás, façam terapia. É um processo fundamental para si mesmo e para que os seus próximos não tenham que fazer por sua causa.

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Almir Oliveira

Cientista Social de formação, Ux Researcher em constante aprendizagem, cinéfilo, apaixonado por comida e culinária, corredor que usa a corrida como terapia.